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29 de setembro de 2023
[326] – DUAS MUTAÇÕES
A mutação histórica do século XX foi equivalente à que gerara o processo civilizador, entre dez e seis milênios antes.

Um excepcional economista antecipou a proposição sobre o Antropoceno, mesmo sem recurso à escala do tempo geológico em que se apoia. Há sessenta anos, alertou que a mutação histórica do século XX estava sendo equivalente à que gerara o processo civilizador, entre dez e seis milênios antes.

É pena que escritos de intelectual tão clarividente, falecido há trinta anos, não estejam entre as leituras mais recomendadas aos alunos de cursos universitários. Afinal, Kenneth E. Boulding (1910-1993) foi tão transdisciplinar que seu mais citado trabalho é sobre a sistêmica como “esqueleto” da ciência.

De família humilde de Liverpool, estudou em Oxford e publicou – precocemente, aos 31 -, o livro-texto Análise Econômica, com diversas reedições, em muitas línguas. Uma das razões para insigne homenagem, em 1949: a medalha John Bates Clark, destinada a jovens talentos pela American Economic Association.

Ao lado de constantes contribuições ao pensamento econômico e à epistemologia evolucionária, desde cedo também impulsionou a pesquisa científica sobre relações internacionais, escrevendo muito sobre os imbróglios geopolíticos. E deixou algumas obras tão poéticas quanto autobiográficas.

Quatro anos antes de morrer, quando se aproximava dos 80, montou uma estonteante tabela, na qual as suas 1.019 publicações, do período 1932-1988, foram classificadas segundo 31 linhas de pesquisa, com indicação do ano da primeira e frequência em cada um dos seis decênios.

A linha “Paz e conflito”, sobre a qual começou a se dedicar em 1942, acabou na dianteira com o total de 152 publicações. Seguida, bem de perto, por “Dinâmica, desenvolvimento e futuro”, com 147, desde 1939. Em terceiro, aparece “Conhecimento, informação e educação”, com 112, a partir de 1953.

Já o tema “Evolução, ecologia e ambiente”, sobre o qual só começou a escrever em 1955, alcançou número bem inferior de publicações: apenas 43. Todavia, em termos qualitativos, certamente foi o mais relevante. Mesmo que tenha sido infrutífero seu empenho em acordar os economistas para a segunda lei da termodinâmica – a lei da entropia.

Entropia indica a capacidade de algum sistema realizar trabalho ou atividade no futuro. Na origem, foi definida, curiosamente, de forma negativa, segundo a qual ela aumenta à medida em que decresce a capacidade potencial do sistema. À medida em que a atividade é levada a termo, o potencial é gasto.

Boulding sugeriu, então, que a segunda lei da termodinâmica seja generalizada com o nome de “princípio do potencial decrescente”, que assume inúmeras formas em sistemas físicos, biológicos e sociais. Também propôs a expressão “segregação de entropia” para o surgimento de ordem por evolução.

Tais ideias podem ter vindo do biólogo Ludwig von Bertalanffy, autor do clássico Problems of Life (1952, em inglês), um dos 35 pesquisadores, de muitos horizontes, que conviveram no “Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences at Stanford University”, durante o ano acadêmico 1954-55.

Também é provável que tenha havido alguma influência das poucas aulas de química que assistiu em seu primeiro ano letivo da pós-graduação de Oxford, aos 19 anos. Um dos mestres, Frederick Soddy (1877-1956), publicou quatro livros de economia depois de receber o prêmio Nobel de Química, em 1921.

Porém, parece ter escapado a Boulding tamanho pioneirismo de Soddy, pois só começou a destacar a questão da entropia na segunda metade dos anos 1950. E, apenas dez anos depois, conseguiu dar-lhe alto grau de didatismo, ao lançar a célebre metáfora que assemelha a Terra a uma espaçonave. Imagem que aflorou em 1966, em encontro da organização “Resources for the Future”. O impacto fez com que fosse o primeiro dos doze ensaios escolhidos para a resultante coletânea, do mesmo ano.

Pode-se dizer, então, que este foi o seu maior contributo sobre a segunda mutação – subjetiva – que, apesar de cada vez mais incontestável, permanece rejeitada pela soberba dos economistas. A da compreensão dos freios ecossistêmicos ao sonho de continuidade da “Grande Aceleração” dos “Trinta gloriosos (1945-1975)”.

Entre as melhores evidências da argúcia de Boulding, destaca-se o livro O Significado do Século XX: a Grande Transição, publicado pela editora Fundo de Cultura, em 1966, dois anos depois da edição original. O que está concentrado em seus breves nove capítulos é – nada mais, nada menos -, o que foi dito na abertura desta coluna: uma lúcida prévia da atual proposição científica sobre o Antropoceno como nova Época. Foi há sessenta anos que Boulding defendeu a tese de que a experiência humana do século XX só seria comparável à dos primórdios do Holoceno.

Agora, para dizer qual de seus 32 livros daria a melhor visão panorâmica das tantas ideias que nos deixou, a resposta é Towards a New Economics – Critical Essays on Ecology, Distribution and Other Themes, publicado pela editora Edward Elgar, em 1992. Infelizmente, só existe em capa dura, por 180 dólares. Para empréstimo, no Brasil, só há um exemplar na biblioteca da UnB.

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